Quando comecei a ler o conto “Nas Montanhas da Loucura”, de H.P. Lovecraft, uma coisa chamou minha atenção logo de cara: os aviões Dornier. O livro foi escrito em 1931 e, nessa época, os aviões já eram relativamente comuns. Mas as descrições de Lovecraft são tão incríveis e soam tão contemporâneas que eu fiquei com a sensação de que aqueles aviões eram modernos demais para aquela época. Mesmo se tratando de um livro de ficção.

Embora escreve primordialmente terror, Lovecraft é um grande fã de ficção científica, tendo escrito alguns contos deste gênero, como o clássico “A Cor Que Caiu do Espaço”. E isso fez com que eu questionasse muita coisa. Afinal, embora eu morra de medo de voar – como qualquer humano racional –, sou um entusiasta de aviação. E as minhas pesquisas sobre esse assunto trouxeram informações tão interessantes que eu decidi compartilhar isso com você.

Afinal, será que aqueles aviões são reais? Será que Lovecraft inventou aquele modelo específico? É sobre isso que vamos falar neste artigo.

Antes de mais nada, gravei um vídeo sobre o autor em meu canal no YouTube. Confira abaixo:

As descrições de Lovecraft

Logo nos primeiros parágrafos da história, o autor diz:

Quatro grandes aviões Dornier, desenvolvidos especialmente para as tremendas altitudes de voo necessárias no platô antártico com dispositivos adicionais para aquecimento de combustível e equipamentos de rápida ignição criados por Pabodie, poderiam transportar nossa expedição inteira de uma base nos limites da grande barreira de gelo até vários pontos internos adequados, e a partir daí uma cota suficiente de cães nos bastaria.

Lovecraft não informa o modelo do avião na descrição, apenas a marca. Mas, segundo um um artigo de 1987, escrito por Jason C. Eckhardt e chamado “Behind the Madness: Lovecraft and the Antarctic in 1930”, é provável que ele seja uma versão fictícia de um avião chamado Do-J Wal, fabricado pela Dornier.

A Dornier Flugzeugwerke foi uma empresa de aviação alemã, fundada em 1914. Foi ma das empresas mais importantes do setor no mundo, entre as décadas de 1920 e 1930. Fabricava grandes hidroaviões de metal, como o Wal e o gigantesco Dornier Do X. Em 1996, a Dornier foi adquirida pela americana Fairchild Aircraft, formando a Fairchild Dornier. Menos de 10 anos depois, em 2002, a empresa faliu.

O modelo Dornier Do-J Wal era um hidroavião com duas hélices de quatro pás e o fato de pousar e decolar na água justifica o nome: Wal significa baleia em alemão. Ao todo, foram fabricados apenas algo entre 250 e 300 aeronaves deste modelo e, apesar de ser alemão, a maior parte das unidades foi construída e montada na Itália. O primeiro voo do Dornier Do-J Wal ocorreu no dia 6 de novembro de 1922.

A primeira derrota/vitória no Ártico

O explorador norueguês Roald Amundsen foi o líder da primeira expedição a atingir o Polo Sul, em 14 de dezembro de 1911. Na ocasião, usou apenas trenós puxados por cães. Em 1918, seguiu para o Ártico em um veleiro, onde passou dois anos à deriva. Em 1926, tornou-se o primeiro explorador a sobrevoar o Pólo Norte em um dirigível e a primeira pessoa a chegar tanto no Pólo Norte quanto no Sul.

Mas a história que nos interessa aconteceu um ano antes, em 1925, quando Amundsen organizou a primeira expedição aérea ao Ártico. Para essa empreitada, decidiu usar dois aviões Dornier Do-J Wal modificados, tripulados por seis pessoas, incluindo ele mesmo. Um dos aviões apresentou problemas ainda na decolagem, mas a viagem seguiu mesmo assim.

Depois de várias horas de voo, um dos pilotos notou que o indicador de temperatura de seus motores começou a subir de forma descontrolada. Quando chegou em 109 ºC, o medidor explodiu, mas os motores continuaram a funcionar. Pouco tempo depois, o nível de combustível começou a baixar de forma anormal.

Nesse momento, as 5 horas da manhã do dia 22 de maio de 1925, Amundsen decidiu pousar as duas aeronaves no gelo Ártico, para reabastecer os tanques dos dois aviões com os tambores de reserva, antes de seguir para o Pólo Norte.

Depois que chegassem no continente, os aviões retornariam com o combustível restante em seus tanques. E, se acabassem ficando sem combustível, pousariam mais uma vez no gelo, juntariam o combustível restante em apenas um avião e abandonariam o outro.

Ainda que tenham sido bem-sucedidos, os pousos não foram tão suaves quanto eles esperavam. Uma das aeronaves sofreu muitas avarias e levaria muito tempo até que ela fosse consertada. Vários rebites haviam se soltado durante a decolagem e isso havia criado um buraco no casco, que logo se encheu de água.

Depois de alguns dias, os seis homens decidiram que a melhor forma de escapar do gelo ártico era abandonar um dos aviões e trabalhar para colocar o outro no ar. No dia 1 de junho, eles tentaram decolar, mas não conseguiram. No dia seguinte, tentavam novamente e também falharam. O mesmo ocorreu no dia 6.

Finalmente, no dia 15 de junho, conseguiram decolar, depois de construirem uma grande rampa de quase um quilômetro de comprimento. Com todos os problemas, os exploradores tiveram que desistir da meta de atingir o Pólo Norte. Mas, mesmo tendo falhado nessa dura missão, o Dornier Do-J Wal conseguiu quebrar o recorde de maior distância percorrida por via aérea em direção ao norte.

Porque Lovecraft escolheu o Dornier Do-J Wal?

É claro que nunca poderemos afirmar nada com exatidão, mas o motivo mais provável está ligado ao piloto alemão chamado Hans Wolfgang von Gronau. Em 26 de agosto de 1930, Gronau e sua tripulação fizeram um voo histórico através do Atlântico, usando um Dornier Do-J Wal. Ele decolou da Alemanha, passando pela, Islândia e Groenlândia antes de posar na cidade de Nova York, depois de percorrer 7.520 km, ao longo de 47 horas de vôo.

Para sua empreitada, ele usou um avião com o prefixo D-1422, exatamente o mesmo utilizado anos antes por Roald Amundsen: o avião que sobreviveu à primeira expedição aérea ao Ártico.

Depois disso, Gonau ficou famoso em todo o mundo e aparecia com frequência nos noticiários, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Sabemos que Lovecraft escreveu o conto entre fevereiro e março de 1931 e é bem provável que o sucesso do voo do explorador tenha influenciado em sua história.

As principais diferenças entre os modelos

Os aviões descritos por Lovecraft tinham muito mais autonomia e tecnologia do que os aviões realmente disponíveis na época. Segundo o que é descrito em ”Nas Montanhas da Loucara”, eles poderiam voar até a surpreendente altura de 24.000 pés, o equivalente a aproximadamente 7,3 quilômetros. Porém, o avião Dornier Do-J só conseguia alcançar metade dessa altura.

Outro detalhe importante refere-se a cabine. Os aviões da expedição da Universidade Miskatonic de Lovecraft possuíam uma cabine completamente fechada. Algumas partes da aeronave eram feiras de alumínio, não de aço, o que deixou o modelo mais leve. O autor também descreve as asas como sendo maiores.

Todas essas mudanças, segundo a obra, foram feitas pelo professor Frank Pabodie, com o intuito de dar mais autonomia para a aeronave e melhores condições para operar na região ártica.

Dentre as mudanças, há também “dispositivos adicionais para aquecimento de combustível”, uma vez que as temperaturas eram muito baixas. Mas o fato é que os aviões Dorniers Do-J Wal já tinham aquecedores internos para evitar que o combustível congelasse.

Os motores também eram diferentes, segundo o artigo de Jason C. Eckhardt. Os Dorniers da vida real tinham dois motores, fabricados pela Rolls-Royce, e eles eram bem diferentes dos descritos por Lovecraft. Não possuíam a mesma potência e, como já mencionado, apenas metade da autonomia.

A presença do Dornier Wal no Brasil

Outra referência curiosa é que esse avião é muito importante para a história de uma empresa brasileira: a extinta Viação Aérea Rio-Grandense, mais conhecida como VARIG. Ela foi uma das primeiras companhias aéreas brasileiras, fundada em 1927 pelo alemão Otto Ernst Meyer.

Pouco tempo antes, em novembro 1926, Otto Meyer viajou para a Alemanha para comprar aeronaves e materiais e encontrar pessoal para operar os aviões. Com esse intuito, ele fechou um acordo com a companhia aérea alemã Condor Syndikat, oferecendo 21% das ações da VARIG em troca da aeronave Dornier Wal, que foi batizada como Atlântico, no Brasil.

Além do comandante, o Atlântico contava com um piloto-mecânico, que podia fazer reparos nos motores Rolls-Royce em pleno voo. Os dois permaneciam na parte de fora da aeronave durante todo o voo e, como não havia uma cabine fechada, eles eram obrigados a usar pesados casacos e capacetes de couro, óculos protetores, mantas, luvas e botas.

O Atlântico voou por muito tempo, até ser desmontado em 1933, no Rio de Janeiro. Suas peças foram vendidas como sucata.

Conclusão

Podemos dizer que os aviões descritos por Lovecraft realmente existiram, ainda que não tenham sido exatamente como ele os apresentou. O que o autor sugeriu, porém, surgiu anos mais tarde, com modelos melhorados e mais preparados para as condições adversas do Ártico.

Com todos os defeitos que ele tinha, H.P. Lovecraft tinha a grande vantagem de se interessar muito por temas relevantes. Ele era um grande entusiasta de novas tecnologias e era apaixonado por química e astronomia. Quando ainda era criança, ganhou de sua mãe e de suas tias um telescópio e isso mudou sua forma de ver o mundo e, consequentemente, a humanidade.

E não posso esquecer do fato de que o jovem Howard também teve acesso a muitos livros na biblioteca do avô, entre eles, obras de literatura científica contemporânea e periódicos científicos.

Sei que minha curiosidade por esse assunto pode ter soado estranha, nos dias de hoje, mas eu gosto de ler livros antigos com um olhar da época. Foi exatamente por isso que as descrições dos aviões me impressionaram tanto no conto. Elas pareciam avançadas demais para algo escrito em 1931. Sabendo do que sei agora, as coisas até que fazem sentido.

Isso também me faz pensar em outra coisa. Muitas pessoas consideram as explorações uma perca de tempo. Afinal, “temos muitos problemas por aqui para gastar tempo e dinheiro explorando a Antártida ou o espaço”. Mas o fato é que boa parte das tecnologias que usamos hoje em dia são provenientes deste tipo de explorações. O GPS, para citar apenas uma, é um grande exemplo.

Por mais escritores que consigam usar a ciência e tecnologia disponível de forma tão incrível, a ponto de fascinar leitores quase 100 anos depois.

Referências Bibliográficas:

Entre para minha lista VIP e receba os conteúdos mais exclusivos sobre storytelling diretamente no seu e-mail

Junte-se a mais de 3200 pessoas

Nós não enviamos spam. Seu e-mail está 100% seguro!

Sobre o Autor

Matheus Prado
Matheus Prado

Matheus é jornalista, escritor e cineasta. Acredita que a vida é um oceano profundo e que devemos nos aventurar muito além da superfície.