Antes de tudo, quero falar de Richard Matheson, o autor de Eu Sou a Lenda. Caso você não saiba, ele também escreveu algumas das histórias mais conhecidas de todos os tempos, como Em algum lugar do passado e Amor além da vida. Também escreveu roteiros para Star Trek: The Original Series eThe Twilight Zone.

Matheson morreu dia 23 de junho de 2013. Sua filha, Ali Marie Matheson, escreveu no dia 24 uma mensagem que foi publicada no Facebook:

O meu amado pai morreu ontem [domingo] em casa, rodeado de pessoas e coisas que amava. Era divertido, brilhante, carinhoso, generoso, criativo e o pai mais maravilhoso do mundo.

Na série Arquivo X há um senador com o nome de Richard Matheson em homenagem ao escritor e no jogo Silent Hill, há uma rua com seu sobrenome.

O último homem da Terra

Talvez, a única memória que o título Eu Sou a Lenda te traga seja relacionada ao filme de 2007 estrelado por Will Smith e pela atriz brasileira Alice Braga. Isso não é de todo mal, afinal, eu gosto bastante do filme. Só fiquei sabendo do livro após assistir ao filme e por esse motivo, serei eternamente grato a ele.

Mas eu preciso dizer que a única coisa que liga o filme ao livro é o título e o nome do personagem principal. De resto, são histórias COMPLETAMENTE diferentes. E não preciso nem dizer que o livro possui muito mais profundidade e mensagens com (acredite ou não) fortes críticas sociais.

Ah, esta não é a primeira vez que o livro é adaptado para o cinema. Em 1964 foi gravado o Mortos que Matam e em 1971 saiu A Última Esperança da Terra. Ambos os filmes são mais fiéis ao livro do que a versão de 2007, embora tenham suas licenças poéticas. O livro também inspirou o roteiro do filme de 1968, A Noite dos Mortos vivos, de George Romero.

Bom, vamos começar com a sinopse do livro:

Robert Neville é o último da sua raça e, aparentemente, o único humano sobrevivente num mundo infestado por vampiros. Ele reina durante o dia, quando ele pode caçar impunemente. Mas, a noite, os vampiros assumem o controle, obrigando-o a ficar entrincheirado na sua casa, protegido por alhos e espelhos. No entanto, por quanto tempo um último homem conseguirá resistir, quando todos os seres sobre a Terra querem o seu sangue? E qual será o preço que ele deve pagar por sua sobrevivência?

Não posso continuar sem alertá-lo que esta resenha trará spoilers gigantescos do livro. Isso é imprescindível para as discussões aqui propostas. Mas, antes disso, vamos analisar o contexto do livro.

Em essência, Eu Sou a Lenda é um livro de vampiros. É um livro extremamente profundo e repleto de mensagens ocultas, mas ainda assim, é uma história de vampiros.

O protagonista, Robert Neville, é um veterano da Guerra do Panamá que se viu imune a um terrível vírus que transformou todo a população numa horda sanguinária de vampiros. Desta forma, Neville se vê obrigado a fazer o que puder para extinguir os vampiros e, talvez, recomeçar a humanidade.

Durante o dia, os vampiros entram numa espécie de hibernação profunda. Neville se aproveita disso para invadir as casas onde eles se escondem e matá-los, enfiando estacas em seus peitos. Eles seguem o modelo tradicional de vampiros: não suportam alho, sol, estacas de madeira, prata e nem crucifixos. Algumas das cenas mais interessantes acontecem justamente quando Neville tenta entender o porquê de tudo isso. Ele não acredita que os vampiros temem tais objetos por motivos religiosos e tenta buscar razões cientificas para tudo.

Durante a noite, ele tenta se proteger em sua casa. Ao contrário do filme, todos os vampiros sabem onde Neville mora no livro. E eles vão lá toda noite para tentar convencê-lo a sair. Eles usam argumentos diversos, desde o ataque até palavras, dizendo que lá fora é melhor. Em uma determinada cena, uma vampira se insinua para ele. O que mostra que eles não carregam os atributos dos zumbis, como visto na adaptação de 2007. Eles pensam e raciocinam, ainda que de forma limitada.

O medo do diferente

Toda a história transcorre sobre os medos de Neville. Ele perambula pela cidade durante o dia, explorando-a ao máximo para buscar comida e recursos. Mas o faz também para tentar manter sua humanidade e sua sanidade. Ao mesmo tempo, mata todos os vampiros que puder. Isso é natural para ele. É a melhor coisa a se fazer.

Mas todos os dias terminam com ele sozinho, acuado e temeroso, rezando para que os vampiros não consigam atravessar suas armadilhas e proteções externas. Eles estão em um número muito maior. Isso mostra a habilidade do autor em criar um clima assustador e claustrofóbico, ainda que Neville tenha o mundo inteiro a sua disposição.

A solidão é tão grande que Neville quase morre unicamente para salvar um cachorro que vê na rua. Ele está sozinho e precisa interagir com alguém que não seja um vampiro. Mesmo que seja com um cachorro. E também é por isso que ele é facilmente enganado por uma vampira que se passa por humana. Ele está tão cego pelo desespero que acredita nela.

É neste ponto que a pergunta central do livro surge: O que é normal?

Conforme a leitura avança, começamos a descobrir que os vampiros estão reorganizando a sociedade. Eles não são mais os seres carnívoros e sem discernimento nos quais Neville acreditava. Eles se agruparam e se organizaram, criaram cargos de liderança e se separam em classes sociais.

E eles têm um inimigo público: Neville.

É fácil entende-los: durante o dia, um monstro terrível invade as casas e assassina friamente os moradores indefesos enquanto eles dormem. Este mostro impiedoso não diferencia ninguém. Ele mata todos que sem põem em seu caminho.

Eles descobriram onde ele morava e tentaram um acordo. Mas o monstro os ignorou completamente. Ele apenas continuava, dia após dia, com sua necessidade de matar.

Então uma lenda surge. Uma assombração que assusta homens, mulheres e crianças.

Esta é a mensagem mais profunda proposta por Richard Matheson. Se a humanidade é a raça dominante, os vampiros são vistos como uma “praga”. Logo, Neville não poderia agir de outra forma. Ele precisava matá-los.

Mas o fato é que Neville, agora, era o último representante da raça humana. Assim sendo, ele era praga e os vampiros eram a raça dominante.

O trecho abaixo exprime exatamente essa ideia:

Para eles, Neville era algo desconhecido, que jamais haviam visto antes, pior até do que a doença ao qual haviam se habituado a enfrentar. Ele era um espectro invisível que sobrara como prova da existência dos corpos sem sangue de seus entes queridos. E ele entendeu o que sentiam e não os odiou. A mão direita apertava o envelope com pílulas. Ao menos, o fim não viria violentamente, não seria uma carnificina. Robert Neville olhou para o novo povo sobre a Terra. Sabia que não pertencia àquela gente, sabia que, como os vampiros, ele era o anátema, o terror a ser destruído. E abruptamente, outra ideia nascia, divertindo-o, apesar da dor. Uma gargalhada partiu de sua garganta. Virou-se, apoiando as costas na parede enquanto engolia as pílulas. O círculo se fechava e se reiniciava, pensou sentindo a letargia final tomar conta de seu corpo. Um novo terror nascia com sua morte, uma nova superstição se instalava na fortaleza da eternidade. Eu sou a lenda.

Conclusão

A conclusão mais plausível que posso sugerir para o livro Eu Sou a Lenda é a seguinte:

O livro descreve um mundo que sofreu um grande abalo e que, em razão disso, evoluiu. Mas Robert Neville, o último resquício deste mundo antigo, não conseguiu evoluir com ele.

Se você apenas assistiu ao filme e se divertiu, recomendo fortemente que leia o livro. A ideia é outra e a mensagem principal também. Mas o filme é uma gota comparado ao oceano que é o livro.

Vale cada minuto gasto.

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Sobre o Autor

Matheus Prado
Matheus Prado

Matheus é jornalista, escritor e cineasta. Acredita que a vida é um oceano profundo e que devemos nos aventurar muito além da superfície.